segunda-feira, janeiro 21, 2008

... palavras de um dia negro

"A chuva caía na rua, pingos finos, estridentes nas pequenas poças que se acumulavam na estrada. Não havia ninguém na rua, o final de um sábado desconfortável era sempre assim, as pessoas fugiam para as suas casas quentinhas, e ele ficava ali, jogado no meio da rua, ao frio, ao vento...

Já não sabia viver senão assim, havia sempre alguém que lhe dava um agasalho, e tinha sempre a sopa quentinha ao cair da noite, junto ao lar de idosos. Mas hoje sentia-se diferente, algo não estava bem... um desconforto extra, inexplicável, porque dias como aquele traziam-lhe sempre boas recordações.

Chamava-se Joaquim Ernesto Santos Pardal, e tinha nascido há quase 40 anos na bela cidade de Luanda. Os pais haviam regressado a Lisboa sem nada, e haviam morrido de fome e frio há mais de 30 anos. Joaquim ficara entregue a orfanatos, de onde saíra com 18 anos, para trabalhar.

Cedo desistiu, e se meteu em tudo o que havia de mau, experimentara todas as drogas, dormira com todas as mulheres, da pior reputação, roubara, destruíra, embora nunca houvesse ferido ninguém. Não gostava de trabalhar, e não precisava, vivia na mesma, e livre, como gostava de pensar.

Era um homem grotesco... atarracado, com uma barba grande e malcheirosa, o cabelo bem comprido, roupas rasgadas, com um cheiro animalesco, um chapéu que um dia fora branco, mas que hoje era um emaranhado acastanhado de fios e ninhos de piolhos, possuía um olhar esgazeado, em tons de castanho, quase negro, e a sua pele estava tão queimada e rasgada pelo frio, parecia esculpida em pedaços de xisto.

Nunca saía do cais... no máximo, passava por Santos à procura da dose diária... e não se lembrava de ter viajado para além do Marquês, o dinheiro vinha sempre até ele.

Sentia-se demasiado importante, demasiado livre para se dar ao trabalho de gastar energias assim.

Estava no meio do Bairro Alto, e subia calmamente a Rua do Alecrim para se ir encontrar com o trafulha do Armindo nas traseiras da estação do Chiado, dizia ele que tinha produto do bom, quando viu que em sentido contrário descia uma miúda a chorar.

Joaquim não pensou, encostou-lhe a sua faca de algibeira à barriga e de repente a miúda agradece-lhe, agarra-o e faz com que a faca se espete no seu ventre.

Ele correu, chorou como nunca, e correu, entrou na estação e saiu de Lisboa, para nunca mais voltar.

Maria, a miúda chamava-se Maria. Tinha 14 anos, acabara por sucumbir depois de meia hora no meio da rua sozinha. Na sua sacola haviam encontrado uma carta de despedida, pelos vistos ia a caminho da linha do comboio, para mais uma tentativa de suicidio.

Joaquim morreu no dia seguinte, com um ataque cardíaco, no entroncamento, à espera do comboio que seguia para Coimbra."

PS - as personagens, acontecimentos e nomes são pura ficção... (de um dia muito negro!)

Sem comentários: